segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Carta por acaso encontrada entre os muitos rascunhos e desenhos deixados pelo Poeta do Fragmento numa gaveta de sua escrivaninha e que ele nunca chegou a enviar ao seu destino


A poeira pousada sobre a foto de nós dois naquele tempo, no antigo tempo. Ainda somos nós nesta foto? Tenho o bom pressentimento que sim. Seu ar de formas tranquilas, seu jeito de olhar que me envolvia em ternuras, carinhos e requintes, ainda que sem toques nem beijos – uma das virtudes das crianças é gostar sem precisar abraçar nem beijar. Porém agora, enquanto, na foto, é uma menina que ensaia, silenciosa uma flor, mas que não sabe que flor. Flores colhidas murcham junto ao peito, flores ensaiadas não. És uma flor sempre ensaiada. 

O desejo que tenho agora é saber se sente saudades. Eu, como não! Quando desta foto não sabíamos de muito, quase nada de tudo, tínhamos intuições pueris sobre as coisas. Qualquer uma coisa que desse errado nos parecia ser de reversível manuseio, uma, duas, tantas vezes quanto precisasse até sermos felizes. O Tempo não era sempre o Tempo. Entre a fumaça da palha e a neblina de uma qualquer tarde de junho tínhamos os vagos campos para percorrer com os olhos. Tínhamos o pasmo essencial para a eterna novidade do mundo de que escreveu o poeta.
Entorpeço agora em atmosfera pronta para que nada se diga e tudo se anuncie, na memória, no íntimo, na saudade, como vejo em hoje, em íntima lembrança, e vejo e ouço entre os volteios do violino do primoroso polonês Chopin, que tanto significa para mim.

É difícil de encontrar resposta para saber da saudade tua; se sentes. Sei da minha, e nesse caso é cruel a maioridade da consciência do tempo e da saudade, e sem encanto algum agora, talvez alhures. O mais que tenho é um remorso mal qualificado como nostalgia. Sorriso fraco em presença daquilo que sequer consigo ver nitidamente; as imagens que guardo daquele tempo, que esvaece cada vez mais e demais quando tento interpretar a foto que de nós dois tenho à mão.

Da paisagem pura que compunha a paisagem ao fundo, especificamente esta do final de junho com fumaça e neblina, vai se apagando primeiro o que é mais vulnerável, as casas pareando-se no caminho, depois o caminho, depois as formações dos eucaliptos, depois a composição dos ares, enquanto vão resistindo outras; o “corguinho” enganosamente límpido e cristalino, a várzea que expandia o horizonte tornando-o comprido ao infinito, a poeira do chão poroso da estrada, os lilases e os lírios intrusos nos pastos.

A tarde de agora enquanto lembra em muito a da foto, possui diferenças básicas; agora é maio, estou piorado e velho, me esforço por lembrar, me perco em dúvidas sem saber do que sentir e se devo sentir à medida do que talvez você sinta. Tem ainda outras duas diferenças, uma, um tímido róseo crepúsculo entre um horizonte irregular de prédios, a outra, o asfalto que oculta e dissolve os planos da memória.

Entre a fumaça da palha e a neblina de uma qualquer tarde de junho, na foto que de nós dois tenho à mão vem-me uma saudade completa, pronta, e sua ausência está comigo.

Seu Poeta do Fragmento
Fonte: herdeirosdodeserto.blogspot.com.br do meu amigo, Alex Carrari

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