Carta por acaso encontrada entre os muitos rascunhos e desenhos deixados
pelo Poeta do Fragmento numa gaveta de sua escrivaninha e que ele nunca
chegou a enviar ao seu destino
A poeira
pousada sobre a foto de nós dois naquele tempo, no antigo
tempo. Ainda somos nós nesta foto? Tenho o bom pressentimento
que sim. Seu ar de formas tranquilas, seu jeito de olhar que me envolvia em ternuras, carinhos e requintes, ainda que sem toques
nem beijos – uma das virtudes das crianças é gostar
sem precisar abraçar nem beijar. Porém agora, enquanto, na foto, é
uma menina que ensaia, silenciosa uma flor, mas que não sabe
que flor. Flores colhidas murcham junto ao peito, flores ensaiadas
não. És uma flor sempre ensaiada.
O desejo
que tenho agora é saber se sente saudades. Eu, como não!
Quando desta foto não sabíamos de muito, quase nada de
tudo, tínhamos intuições pueris sobre as coisas.
Qualquer uma coisa que desse errado nos parecia ser de reversível
manuseio, uma, duas, tantas vezes quanto precisasse até sermos felizes. O
Tempo não era sempre
o Tempo. Entre a fumaça da palha e a
neblina de uma qualquer tarde de junho tínhamos os vagos
campos para percorrer com os olhos. Tínhamos o
pasmo essencial para a eterna novidade do mundo de
que escreveu o poeta.
Entorpeço
agora em atmosfera pronta para que nada se diga e tudo se anuncie, na
memória, no íntimo, na saudade, como vejo em hoje, em
íntima lembrança, e vejo e ouço entre os
volteios do violino do primoroso polonês Chopin, que tanto
significa para mim.
É
difícil de encontrar resposta para saber da saudade tua; se
sentes. Sei da minha, e nesse caso é cruel a maioridade da
consciência do tempo e da saudade, e sem encanto algum agora, talvez
alhures. O mais que tenho é um remorso mal qualificado como nostalgia. Sorriso fraco em
presença daquilo que sequer consigo ver nitidamente; as
imagens que guardo daquele tempo, que esvaece cada vez mais e demais
quando tento interpretar a foto que de nós dois tenho à
mão.
Da
paisagem pura que compunha a paisagem ao fundo, especificamente esta
do final de junho com fumaça e neblina, vai se apagando
primeiro o que é mais vulnerável, as casas pareando-se
no caminho, depois o caminho, depois as formações dos
eucaliptos, depois a composição dos ares, enquanto vão
resistindo outras; o “corguinho” enganosamente límpido e
cristalino, a várzea que expandia o horizonte tornando-o
comprido ao infinito, a poeira do chão poroso da estrada, os
lilases e os lírios intrusos nos pastos.
A tarde de
agora enquanto lembra em muito a da foto, possui diferenças
básicas; agora é maio, estou piorado e velho, me
esforço por lembrar, me perco em dúvidas sem saber do
que sentir e se devo sentir à medida do que talvez você
sinta. Tem ainda outras duas diferenças, uma, um tímido
róseo crepúsculo entre um horizonte irregular de
prédios, a outra, o asfalto que oculta e dissolve os planos
da memória.
Entre a
fumaça da palha e a neblina de uma qualquer tarde de junho,
na foto que de nós dois tenho à mão vem-me uma saudade completa, pronta, e sua ausência está
comigo.
Seu Poeta do Fragmento
Fonte: herdeirosdodeserto.blogspot.com.br do meu amigo, Alex Carrari